"Porém, pera cantar de vosso gesto a composição alta e milagrosa, aqui falta saber, engenho e arte." Luís de Camões ... assim encontrareis aqui palavras magoadas a tornar o fogo frio e dar descanso a minha alma condenada ...
sexta-feira, 31 de março de 2017
MAIS DE DOIS
um impostor viveu sempre em mim
só que à maneira inversa
ser eu foi ser diplomata
executivo ou negociador
o dia todo
enquanto o outro lado de mim
era caipira ainda
aquele do interior
já viu só
o eu que verdadeiro sou
é o caipira
esquizofrênico sempre soube o inimigo
caipira dirão os pouco amigos
mas sempre fui quem não pode
para isso ser concebido
no que um é sofisticação
no outro é coração
e amor que acontece no fazer o que não é
um a olhar o mundo do alto
o outro a vivê-lo no chão
eis minha confissão
sou dois em um
ou mais que dois
ator capaz de fingir
a dor que nunca sentiu
o amor que sempre viveu
caipira que gosta de ser
o mesmo momento em conflito
no paralelo que é convergente
de uma só vez um destino
caminho que leva a toda parte
parte e reparte
um modo nada sutil de estar enganado
sem enganar a ninguém
um que escondo outro
que me esconde à vez
olhado por mim
entretanto
sou eu mesmo
nem composto nem simples
comigo só posso ficar
Rio de Janeiro, março de 2017.
IMPOSTOR
isso de não ser poeta rendeu
amigos que me estimulam
outros que me aplaudem
mas tentarei ser modesto
nada de Carlos Drummond
nem mesmo de João Cabral
mas existe um eu que não conheço
que me embala que me constrange
e nem contato tem comigo
mas escreve altas horas
reescreve sublinha em conflito comigo
quer-se ver em páginas escrito
aff... não me compra
no máximo ouço-lhe o canto
com certo encanto
contradiz-me em intenções
e me diz
publica
no que nele é pretensão
em mim é gesto modesto
e resisto
acho que é impostor
Rio de Janeiro, março de 2017
quinta-feira, 30 de março de 2017
POETA NÃO SOU
isso de ser poeta é uma frustração
pois não sei falar de flores
nem dos aromas de um jardim
e quando trato de amores
o pensamento trava
lembro sempre o poeta
que decifrou o segredo das flores
que têm um tempo de vida
em pétalas se desfazem
e como tudo morrem
engana-me cada dia a alvorada
pois que o sol se põe no poente
e não sei cantar estrelas
nem fazer juras de amor
sob a lua tão pálida doente
ser poeta
serei tão limitado e pesado
que depois de muito pensar
dar tratos à imaginação
rabiscando feito pateta
decidi não tentar
não sou poeta
Rio de Janeiro, março de 2017
QUE FAZER
que faço eu a escrever poesia
é a pergunta que se equilibra em outra
que faria eu se não existisse vida
assim perplexo lembro-me das palavras
que me servem para criar versos
regressos de mim mesmo à minha liberdade
vim para ser
se poeta não sei
mas é com poesia que tudo faz sentido
desdobrando metáforas pedinte de ideias
ouvindo o vento que sopra sossegado
olhando estrelas comunicando espaços
que os olhos não vêem
mas as palavras sentem
tudo o mais nada vale o verso
se deprimido vazio isolado em vida
entre o nascimento e a morte
deixo o abismo e não vivo o universo
palavras (autênticas)
ideias (falsas)
não quero viver sem as conseqüências
de organizar o espaço e o tempo
e preparar-me para o indesejado fim
dessa verdade que me dói os ossos
que farei se não escrever poesia
Rio de Janeiro, março de 2017
terça-feira, 28 de março de 2017
MENOS UM DIA
bebi a vida
e até hoje me embriago
um sem remédio que se remedeia
a cada dia na seqüência de ser
isolado às vezes
outras agregado como sinfonia
fosse tudo igual seria diferente
onde estou seria sempre o mesmo
todo dia
assim na infância o mesmo na velhice
sem esforço igual
um ao outro
mas não é ou talvez não seja
um momento de ansiedade
uma alegria com a idade
a conclusão antes do fim
ou o início com paralisia
vem a destruição sem construção
vem o calafrio em dia quente
vem o calor em pleno inverno frio
vem a tristeza intercalada ao nada
vai e vem
sem lógica ou exaltação
resta um grito
talvez cansaço
desse período noturno
das forças inelutáveis dos astros
que giram sobre si mesmos
e transladam em torno de um sol
ah...o fim é o foco
do que p'ra mim nem começou
e sou bebido sem contradição
ai
Rio de Janeiro, março de 2017
domingo, 19 de março de 2017
CANSAÇO
há o desejo de buscar saber
no abismo do inconsciente
a razão do cansaço
que me domina o corpo
e invade a alma
não é o espaço onde estou que me incomoda
mas o tempo árido
em sua corrida do passado ao presente
que não me permite perceber o futuro
incógnita função de muitas causas
e dos imponderáveis
não sei
sei que vivi
no íntimo conheço-me
não ignoro meus pecados
nem por eles me penitencio
foram instantes
e tenho a inteligência deles
ouço os ecos de outros muitos momentos
de alguma generosidade
e suas promessas que se realizaram
tenho o sentimento deles
e do que deles transcende
este sou eu
tentativamente dominante
mas o cansaço existe
e não há entendimento que o supere
exceto o silêncio do sono
que recupera momentos
nos sonhos que ainda restam em mim
Rio de Janeiro, março de 2017
sábado, 18 de março de 2017
"INFINITO ÍNTIMO"(*)
a solidão do silêncio aguarda o fim
severo no infinito de todas as coisas finitas
que desaparecem num cerrar de olhos
e desacreditam o próprio conhecimento
onde quer que estejamos morremos
no silêncio ruidoso do sono
e dos tormentos do inconsciente
ocultos no abismo do pensamento
e se a noite escura de um escuro céu
esconde provisoriamente os pecados
relembro-os dolorosamente
confrontado com o inesperado vazio
da solidão e do silêncio em que nada me consola
no desequilíbrio que é só meu
enquanto tudo se move e me isola
no "infinito íntimo"(*) do que sou eu
Rio de Janeiro, março de 2017
(*) Murilo Mendes
quarta-feira, 15 de março de 2017
SONAR
desde um útero de ruídos
há contato com o mundo
externo ao feto mas buliçoso
que nos dá à vida
mesmo os meus pensamentos
que dão inteligência à pedra
dialogam a linguagem da imaginação
o vento que sopra do mar assovia
a brisa chora
o marulhar das ondas esparramadas
tudo fala
e me sinto vivo porque ouço
a liberdade é nossa
de amar o que no outro reverbera
e a solidão da vida retempera
no calor do fogo que crepita e estala
para encher os dias de alegrias
identidade é o amor que grita o sentido de meu verso
assim quem sou no nexo das palavras
a transformar virtual em real
na rota de entender os sons
reta como o sonar do que vai
e sempre volta
Rio de Janeiro, março de 2017
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