domingo, 25 de maio de 2008

PALHA



o mistério é o que nos resta
o passado inútil é parte da inocência com que a cor do mundo foi descrita
entre pragas e urtigas sobre a palha em fogo do que fomos

Londres, janeiro de 2007.

CLARO ESCURO



reconheço no claro o brilho desse lume
mas nada sei do escuro de onde veio

Londres, janeiro de 2007.

FEBRE



à margem de um verso anotei minha paixão
e era febre ainda ardente
em graus de ausência e de presença
na ânsia de sentir

juntos sossobramos no desesperado sentimento
desfeito no mistério do vil esquecimento

Londres, janeiro de 2007.

NAVEGAÇÃO



amei amigos vestido de ternura
para aprender a partilhar o mesmo barco
no mar da estima e desestima

senti sede de carinho carente de alegria
navegando pensamentos hoje memória
de um mundo perdido entre chuva e sol

esta realidade mescla vida e tédio
fatigada
sobrevivente no desejo
de viver a parte final na suposição de que há mar
sóbrio de razões
para ainda navegar


Londres, março de 2007.

ABISMO


o abismo está à beira de mim mas não o alcanço
como essência atrás do vento sopra esperança e alguns suspiros

nele um grito é só um pensamento

o eco são tristezas

acima olhos sussurrantes como vidros
desfloram almas
enquanto desço por uma corda rente à pedra
e claridades brancas põem a nu a solidão

diante do desconhecido peço tempo
para entender a divindade
mas tenho medo do que sou de costas para a noite
onde o próprio Deus na realidade hesita

resta pouco roucos sons em outros planos
de um desejo superado de outra solidão
além de mim em tempo transtornado
o abismo não consente


Londres, março de 2007/revisto em maio de 2008.

DESVAIRO


[à minha idade provecta]

sonhei que sonhava descuidando os anos
nenhuma estranheza em caminhos naturais e calmos
onde conheci desejos encantados na surpresa do ocaso

sonhei olhar o passado

no horizonte onde descobri o sentimento
como quem conhece ilusão desilusão e fado

sonhei a poeira do sol sob orvalho
sonhei um novo universo
verde no inverno quando nascem flores
e almas descobrem o sexo

sonhei que sonhava palavras sob luzes paradas
de um segredo aberto no prazer estranho ao mundo
de um lentíssimo incêndio

sonhei a ânsia de reaver o tempo


Roma, março de 2003/revisto em Londres, maio de 2008.

Villa Lobos - DEVANEIO

a minha mãe

boneca de pano

o piano entoa o canto de minha terra
no riso da criança sem nome
como boneca feita de pano

desterrado
essa música lembra o que amo

bonecas da minha gente
falam aos olhos do mundo
como céu antigo de sol

esta estrada musical fere

abstrata gente a olhar
nossas lendas a natureza e o mar

cirandas de afetos vividos
roda tortuosa em sons que convidam
a não morrer nos meus sentidos

essa balada é som primeiro de vida



Roma, março de 2003/revisto em Londres, maio de 2008.