para Nydia Bonetti
ah árdua gramática
tu és a regra que nos ensina as coisas por dentro
mas o poeta ama as palavras
e os interstícios que a regra fria não sente
Rio, agosto de 2013.
a linguagem do tempo tem sabor e graça
tem o dom do nada e o sabor de tudo
não é senão a vista do alpendre largo
de que se descortina a vida
instantâneamente
o sabor é leve
pode ser intenso
e a beleza presente no seu estro
está aí a graça
mas
disse alhures que o tempo é vento
que rasteiro voa e ligeiro passa
traz sempre novas
ensina a cada passo
agora digo o tempo é mais que espaço
sôfrego sorve
não acolhe passa
e bem sabemos só nos deixa o rasto
se lhe roubamos o instante
poder-nos-á caber o abismo
ou bem possível um horizonte azul
é breve a tão longa vida
onde tudo cabe
a sete chaves
o tempo curto é capaz de tudo
o largo espaço que da varanda vemos
é o que temos
o tempo é que nos perde
Rio, agosto de 2013.
a Ronaldo, meu irmão
não voltarei a face atrás para cantar passado
o que me encanta ainda na lembrança
é o tempo que alheio a meu presente
só me faz chorar ao vento do futuro
mas
não serei extinto por olhar atrás
tenho ainda a lira
tenho a melodia viva que compus no tempo
tenho quem a cante a me fazer contente
perfume doce de momentos vivos
de meu passado guardo cada instante
com sabor e cheiro
do que foi meu inda que breve
Orfeu não sou nem tenho Eurídice
mas amo a ideia da busca do passado
na memória cheia sobre fertil fado
tenho saudade mas não sofro dela
sei que vivo e só o tempo perde
quando rasteiro voa e velozmente passa
como de si arrependido
por não ter vivido
não há futuro mas soma de presentes
solene tempo de sonho sem projeto
"o fado cumpre-se" diz-me o Poeta
mas "eu me cumpro" no instante breve
Rio, agosto de 2013
encerro a vida como quem não começou
apaixonado e carente desejando mais
nunca saberei o que fui
tal como não sei o que tentei
tudo me parece igual no final
nada ou quase nada resta a dizer
exceto que eu amo
exceto que eu quero
exceto o pensamento pronto
para o que vier
o passado é galardão em caixa fechada
ressalto nele a experiência
que agora não me serve de nada
honrarias trabalho recordações condenadas
livros não lidos escritos não terminados
romance de interior catalogado
célebres ou perdidos na desmemória
restam alegrias embaçadas
no tempo que não retorna
o presente é fugidio
cada dia na intensidade adequada
para não perder o fio
da meada que se enrola
passa e desaparece
no momento mesmo que acontece
é imperfeita a vida
salvo no sopro em que ligeira passa
salvo no instante iluminado em que se ama
a própria vida
salvo no vigoroso teste da esperança
salvo
salvo em tantos momentos
de que desisto porque desaprendi de viver
Rio, agosto de 2013.
o reboco conservado
cobre a pedra bem cravada
paredes retas
desgastadas mas tratadas
a alvenaria antiga resiste
chuva sol vento geada
é dentro que a vida cessa
no interior apodrecido
caos de passado
fios e dutos despelados
entranhas como é por dentro
reviradas
a vida quase não fala
Rio, agosto de 2013.
tudo o que nos dá o mundo
é o que nunca terei
cumpre-se aqui o fado
cujo fim não saberei
deslembro o que passou
apenas sei que passou
imensa é a hora
breve o tempo
que nos desabraça
em sua passagem
como brisa como vento
gradual
nesta existência dilatada
enquanto dura esta matéria gasta
alheia a mim a vida é uma alvenaria
estranha e fugidia
de paredes caiadas
onde cabe só o pensamento
do sono perfeito a sobrevir
desnudo sedutor e frio
embalsamado
Rio, agosto de 2013.
por vezes o mar escuro* noite a dentro
é abismo onde me afoga a solidão
do fim de existir
busco a razão de chegar onde cheguei
nesta planície quando pouco resta a desvendar
exceto o mistério de tudo
e a validade do nada
é muito pouco para continuar a viver
*diante de minha janela
Rio, agosto de 2013